Rosana Fernandes, filha de família humilde com 8 irmãos, iniciou sua trajetória política e social nas CEBs -Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica em Cáceres, no Mato Grosso, e diz ser a “ovelha vermelha desgarrada da família”. Suas primeiras atuações foram ainda durante sua adolescência, aos 16 anos, na Pastoral da Juventude, onde teve sua base essencial para compreender as relações de trabalho e a sociedade capitalista.
Na Pastoral da Juventude integrou o Centro de Defesa dos Direitos Humanos Dom Máximo Biennés, em sua cidade, onde conheceu a luta dos Sem Terra e dos Sem Teto, e em defesa da vida. Na época Rosana frequentava o curso de Pedagogia na Universidade do Estado do Mato Grosso, em Cáceres.
Em 14 de agosto de 1995 o MTS – Movimento Sem Terra promove a primeira ocupação de um latifúndio em Mato Grosso, marcando sua fundação no Estado. No final daquele mesmo ano acontece a segunda grande ocupação, na região Sul do Estado, em Rondonópolis. Ainda naquele ano, dois dirigentes do MST fundam o movimento em Cáceres, que fica na região Sudoeste, e passam a aliar-se às comunidades locais, e igreja. Na comunidade Santa Isabel, Paróquia Cristo Trabalhador, conhecem Rosana, que atuava ali, na PJ. Ela é convidada e passa a integrar o MST, fazendo um trabalho de base junto às comunidades rurais.
O pai de Rosana, Alagoano (falecido em 2017), sempre trabalhou nas grandes fazendas da região, sem nunca ter conquistado sua própria terra para trabalhar e plantar, e fazer o sustento da família. Com as ações do MST, Rosana passa a ter a esperança de que seu pai conquiste um pedaço de terra. Mas o pai desconfiava das boas intenções do movimento, e ainda não aceitava as ocupações como forma legítima da conquista da terra pelos trabalhadores.
Desse acúmulo de lutas e experiências em Cáceres, ocorre outra grande ocupação de terras no Mato Grosso, em 9 de abril de 1996, promovida pelo MTS, um domingo de Páscoa. Rosana Fernandes, três dias antes, já acompanhava a liderança do movimento nos preparativos da ocupação, sem que seus pais soubessem. Os ativistas iam de comunidade em comunidade para arrebanhar trabalhadores para a tarefa.
A ocupação foi um sucesso e centenas de pessoas aderiram ao movimento, indo ao local com carros velhos, caminhões de bois e qualquer tipo de transporte que fosse encontrado. Durante a madrugada de domingo 1.503 famílias ocuparam a Fazenda Santa Amália, em Cáceres, uma grande novidade na região. A notícia se espalha e a família de Rosana descobre sua ativa participação, e a proíbe de voltar ao acampamento, temendo por sua vida e segurança, além de discordarem da forma de luta do MST. As angústias de seus pais não eram infundadas; a violência no campo era – e é ainda hoje – uma cruel realidade, e no dia 17 de abril, apenas dias depois da ocupação de Mato Grosso, houve o histórico e trágico massacre de Eldorado dos Carajás, com 19 sem terras mortos e centenas de feridos a bala pela polícia e fazendeiros, no sudeste do Pará.
Rosana concordou com seus familiares e voltou ao trabalho na CDH e à Universidade. Mas rapidamente voltou ao acampamento, ocultando sua militância dos familiares. Ela integrou Núcleos de Base, Coordenação, Assembleias, reuniões, audiências públicas, negociações com a Diocese, Governo do Estado. Rosana também, com apenas 18 anos, fez seu cadastro no INCRA para tentar o direito a uma fração da fazenda ocupada, a despeito da discordância de seus familiares.
Na Secretaria Estadual do MST
Em junho de 1996 Rosana Fernandes é convidada a integrar a nova Secretaria Estadual do MST em Mato Grosso, com sede em Cuiabá, e aceita o desafio. Ela era catequista e estava a um passo de optar pela vida monástica, com planos de ir para um Convento das Irmãs Catequistas Franciscanas, muito progressistas, com as quais mantinha um compromisso desde 1994-95. Mas desistiu da vida religiosa para seguir na luta dos Sem Terra. E seguiu para Cuiabá, a mais de 500 km de Cáceres, em julho de 1996, avisando seus pais, a comunidade e o CDH de sua decisão. Também teve de interromper seus estudos na Universidade, que só retomaria anos mais tarde.
Na Secretaria do MST em Cuiabá também passou a realizar um trabalho de Educação no Campo, aproveitando sua experiência pedagógica, e participou das negociações com o governador do Estado, Dante de Oliveira e até o bispo da Diocese, para a regularização da ocupação da Fazenda Santa Amália junto ao INCRA. No mesmo ano de 1996, apenas seis meses depois da vitoriosa ocupação, as 1503 famílias já estavam sendo assentadas formalmente, sem risco de reintegração da Fazenda, que foi desapropriada para fins de colonização da reforma agrária. Uma das beneficiadas foi Rosana Fernandes, que tinha seu cadastro reconhecido e aprovado, com apenas 19 anos. Ela tinha de decidir o que fazer com a terra conquistada, um lote de 26 hectares; ou assumia o terreno, ou teria que repassar a outra família.
Rosana viajou até Cáceres e contou a novidade a seus familiares; a princípio seus pais recusaram o lote, acreditando não ter direito de ocupar uma terra que não comprou com seus próprios recursos. A terra não era muito fértil e precisava de um trabalho árduo. Um dos irmãos de Rosana e a esposa aceitaram. O casal permaneceu no lote por um ano, mas não se adaptou. O irmão devolveu o terreno a Rosana, que novamente insistiu que seus pais aceitassem o lote, explicando da legalidade da posse junto ao INCRA.
Mais esclarecidos sobre a situação e sobre o próprio papel do MST na luta pela terra, os pais de Rosana aceitaram ocupar o lote e seguiram para a vida rural, já sem patrões. Seu pai disse ‘sim’ e organizou sua vida para ir morar no assentamento, levando além da mudança, muitas mudas de árvores frutíferas, e plantou um pomar com laranjeiras, cajueiros, mangueiras, “dando a cada árvore o nome de um dos netos, uma simbologia muito bonita que tem no lote”, diz Rosana emocionada. Seu filho mais velho ganhou o cajueiro, então seu pai dizia: “O cajueiro do Pedro não deu muita fruta esse ano. Ele reconhecia as plantas pelos nomes dos netos”.
A família passou por muitas dificuldades pela falta de infraestrutura, mas os pais de Rosana foram sempre muito cuidadosos com a natureza. A pastagem que criou para o pequeno gado de leite, não sacrificou as mudas de cedro e outras plantas nativas que encontrava no lote, e hoje, passados 24 anos o terreno tem uma verdadeira floresta. Hoje ainda residem no local a mãe e um irmão caçula de Rosana. Os outros irmãos seguiram profissões urbanas.
Em 1998 Rosana Fernandes voltou a estudar Pedagogia, numa parceria do PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, numa das primeiras turmas, já que aquele programa nasceu justamente naquele ano, fruto da luta dos movimentos sociais e sindicais de trabalhadores rurais pelo direito à educação com qualidade social. Ela se formou em Pedagogia da Terra pela UNEMAT.
O MST de Mato Grosso fez 25 anos em 2020, e realizou uma Plenária Virtual em comemoração, já que a pandemia inviabilizou uma festa presencial. Rosana foi homenageada como a primeira Secretária do Movimento no Estado.
Em 1999 Rosana foi juntamente com seu companheiro para Goiânia para organizar o MST no Estado de Goiás, onde ficou até 2014. Ali teve mais dois filhos – o primeiro nasceu em Cuiabá – e organizou sua vida e militância por 15 anos. Neste período fez uma especialização em Educação no Campo, pela UNB (Universidade de Brasília), numa parceria daquela instituição com o ITERRA (Uma escola do MST no Rio Grande do Sul). Este curso – Educação no Campo – foi o primeiro curso formal na estrutura da ENEFF, em 2003, quando a escola ainda estava em construção, mas as aulas já ocorriam de forma improvisada, sem a infraestrutura terminada, “ouvindo as batidas dos martelos, das máquinas”. Rosana terminou essa especialização em novembro de 2005, no mesmo ano da fundação da Escola Nacional Florestan Fernandes.
No MST de Goiás Rosana Fernandes respondia pela Direção Nacional no Estado, permanecendo nesta condição por 8 anos. Em 2013 ela entra no curso de Mestrado, numa parceria da ENFF com a Unesp – Universidade Estadual Paulista, na Geografia, numa linha voltada à Educação. Em 2014, como o MST realizaria mais um Congresso Nacional, Rosana pediu afastamento da Direção, sugerindo a indicação de outra companheira para a tarefa.
Na Direção da ENFF em 2014
Mas, durante o Congresso Nacional do MST, realizado em fevereiro de 2014, Rosana Fernandes foi chamada para uma reunião, na qual foi convidada para assumir a direção da ENFF. A decisão de aceitar foi difícil, já que Rosana pretendia se dedicar ao Mestrado. Mas acabou pesando o desafio de dirigir uma das maiores experiências em Educação Libertadora da América Latina. E a partir de agosto de 2014 ela já assumiu a direção na Escola, em lugar do antigo diretor Erivan Hilário dos Santos. Inicialmente, Rosana deveria permanecer por três anos na direção da ENFF, mas já se passaram seis anos, e o trabalho continua.
No final de 2019 Rosana Fernandes participou da seleção para o Doutorado na UNICAMP, e foi admitida, e em 2020, em plena pandemia do Covid-19, é seu primeiro ano nos estudos e preparação para a tese. Ela explica que é um novo desafio, “mas sempre em diálogo com as questões do movimento”, consultando tanto a escola como os companheiros do movimento (MST). A tese de doutorado de Rosana será em torno da experiência da Escola Nacional Florestan Fernandes no processo de formação humana. “Já que eu estou nesses últimos anos vivendo isso, sistematizar um pouco esse fazer da escola, e o pensamento de Florestan Fernandes no cotidiano da escola”.
Rosana diz que em julho de 2020, no Centenário de Florestan Fernandes, ela pôde compreender algumas questões sobre a importância deste pensador no processo de formação, e isto a tem instigado bastante, e será uma das linhas de estudo em seu doutorado, “o que Florestan tem de materialidade nos processos formativos” da escola.
(Comunicação AAENFF)